Supreme Magus - Cap. 180
Capítulo 180: Crisol cruel (2)
Voltar para a Mansão Ernas foi uma questão de minutos. Assim que eles ficaram longe dos ouvidos da Elina, Orion explicou brevemente para Lith como o ato de assassinar alguém tinha afetado seus dois companheiros.
Lith apenas escutou, ponderando sobre o que ele poderia fazer a respeito do estado mental deles. A situação parecia não ter esperança.
Quando eles passaram pelo último portal de Passos Dimensionais, Jirni Ernas estava esperando por eles. A surpresa paralisou Orion por tempo o bastante para permitir que ela tomasse a iniciativa.
— Querido Lith, eu ouvi muito sobre você. Sou a Duquesa Jirni Ernas. É um prazer pode te conhecer. Acho que nosso encontro já deveria ter acontecido há muito tempo. — Ela fez uma reverência para ele antes de oferecer sua mão direita.
Ao se apresentar primeiro, a dama da casa concedeu uma grande honra a ele. Era uma situação muito incomum, para a qual existia apenas uma resposta possível.
— Oprazer é todo meu. Estou ao seu serviço, milady. — Lith se ajoelhou pela metade enquanto beijava a parte de trás da mão dela.
Seus olhos se encontraram, cada um estudou as expressões e reações do outro.
Essa mulher está sendo educada demais com um plebeu. Ela claramente tem uma intenção oculta. Se ela acha que vai me pegar de guarda baixa com a estrutura física pequena e semblante gentil dela, ela está tremendamente enganada. O que quer que ela esteja pretendendo me vender, eu não vou comprar. Os pensamentos de Lith acertaram na mosca.
Tão jovem e tão conhecedor da cerimônia de etiqueta. Jirni pensou. Essa é a ocasião perfeita para ver se o que dizem sobre ele está correto. Eu devo ser capaz de testar o valor dele e ver se ele é um pretendente em potencial para uma das garotas.
— Jirni, minha querida, o que você está fazendo aqui? — disse Orion, com um sorriso rígido, fazendo tanto Lith quanto Jirni franzirem suas sobrancelhas, desaprovando de suas habilidades fracas de atuação. Durou apenas uma fração de segundo, mas eles perceberam a reação um do outro.
Lith e Jirni se tornaram imediatamente cientes da atuação mútua que estava ocorrendo de ambas as partes e mudaram seus planos de acordo com isso.
— Meu querido marido, eu entendo o quão sensível esse problema é para você e as crianças. Eu só queria me apresentar para o nosso estimado convidado. Ele tem que saber o quão gratos nós somos pela ajuda dele em tempos de necessidade.
A voz dela estava cheia de preocupação, mas seus olhos estavam duros como aço.
Traduzindo: eu não confio nesse estranho para colocar minha família nas mãos dele sem deixá-lo saber que ele não pode se dar ao luxo de falhar.
A interpretação do Lith estava mais uma vez correta.
— Fico grato por sua confiança, milady. Um amigo de verdade não pode ficar parado quando pedem sua ajuda. Farei o melhor que posso, isso é tudo que posso te prometer. — A voz de Lith estava gentil, enquanto seus olhos estavam frios.
Assim como a Jirni, ele manteve a atuação gentil mas não tentou mais enganá-la. Devido à natureza similar deles, eles tinham estabelecido uma compreensão silenciosa e um respeito entre eles.
Então você veio aqui apenas por causa da insistência do meu marido e você não acha que há muito que possa ser feito. Até agora, nada mal, jovenzinho.
A conversa que estava ocorrendo entrelinhas estava deixando Orion maluco, mas ele não sabia como fazê-los parar sem ser terrivelmente rude. Felizmente, Phloria veio ao seu resgate.
— Oi, Lith. — As bochechas dela ficaram vermelhas ao vê-lo. Phloria ainda estava pensando na última ligação deles. Ela estava vestindo um vestido noturno esmeralda sem mangas, que destacava sua pele linda e seus cabelos negros.
Lith se curvou educadamente mas friamente para ela, o que ela respondeu desajeitadamente com uma reverência.
Jirni não deixou um detalhe sequer passar despercebido.
— Desculpa te incomodar mãe, mas os funcionários estão tendo problemas para arrumar a mesa de jantar, eles precisam da sua supervisão.
As palavras dela forçaram Jirni a se retirar e seguir sua filha.
— Esse é o garoto que fez você mudar sua roupa de dormir? — perguntou Jirni com um sussurro, assim que a porta se fechou atrás delas.
— Não! — Phloria mentiu descaradamente, ficando corada até as orelhas.
— Sério? Então por que você está finalmente usando um vestido ao invés das suas amadas calças?
— Talvez porque você me importunou o dia inteiro para colocar um vestido pelo menos para o jantar? — Jirni estalou sua língua, Phloria estava certa.
— É uma pena que ele não pareça estar interessado. — Jirni continuou logo em seguida, sem nenhum pretensão de deixar Phloria ter a última palavra. — Eu sempre te disse, para capturar o coração de um homem, a melhor roupa é roupa nenhuma.
***
— Geralmente, nesse horário o Yurial já está dormindo. — Orion guiou Lith através dos corredores ricamente decorados até eles chegarem nos quartos para convidados. — Espere aqui, deixarei você entrar assim que ele estiver completamente acordado. — Orion bateu na porta antes de entrar, deixando Lith sozinho com suas preocupações.
A única coisa da qual tenho certeza é que o pai do Yurial e o Orion devem estar muito desesperados. Meus colegas já fizeram uma pesquisa sobre o meu passado, então os pais deles devem saber sobre meu passado também. Vendo como eu acabei, que tipo de ajuda eles acham que eu posso fornecer?
Considere isso uma oportunidade para ajudar a si mesmo e a eles ao mesmo tempo. Você nunca teve ninguém para compartilhar seus fardos. Primeiro você tinha que proteger o Carl, depois você tinha que se alimentar e salvar a Tista. Solus disse.
Sua missão por poder te levou para um caminho solitário. Você não podia permitir que ninguém soubesse o que você estava passando, sempre aguentando tudo sozinho. Pense neles como o jovem Derek. Diga para eles o que você diria para sua versão mais jovem se você tivesse a oportunidade.
As palavras da Solus lembraram Lith o que a psicoterapeuta dele havia falado para ele múltiplas vezes. Que para as feridas dele se curarem, ele precisava ser aberto e honesto sobre seus sentimentos.
Seguindo o conselho da Doutora Shore, Lith/Derek havia até feito trabalho voluntário em um abrigo para vítimas de abusos domésticos, mas em vez de empatizar com eles, ele acabou se orgulhando de ter sido capaz de causar a morte de seu pai.
Ele estava sofrendo tanto quanto eles, mas pelo menos ele tinha uma vida e uma casa. Ao contrário deles, seus dias como uma vítima estavam acabados. As pessoas com quem ele estava trabalhando, ao invés disso, estavam sempre tremendo de medo, constantemente tomando cuidado com seus arredores.
Ao escutar as histórias deles, Lith/Derek apenas ficava com mais raiva ainda, odiando a humanidade mais e mais. Após apenas algumas semanas, a Doutora Shore percebeu as mudanças negativas no comportamento dele e pediu para ele parar.
Quando Orion deixou ele entrar, Lith percebeu a presença de um homem que se parecia muito com o Yurial. Antes do Orion conseguir apresentá-lo, Yurial começou a gritar com o Lith.
— Que belo amigo você é! Agora é tarde demais pra resolver aparecer. Onde você estava enquanto eu estava deitado em uma poça de vômito e lágrimas? Eu fiquei daquele jeito por horas antes do meu pai entrar em contato comigo. Porra, já se passaram cinco dias e você nunca ligou ou visitou. Qual é o seu problema?
Velan Deirus ficou muito envergonhado com o comportamento rude de seu filho, mas ao mesmo tempo muito feliz.
Yurial parecia ter reencontrado sua força. Vê-lo enfurecido já era uma grande melhora.
As palavras do Yurial fizeram Lith se sentir culpado, até conseguiram magoá-lo um pouco. Tendo decidido seguir o conselho da Solus, Lith deixou sua culpa de lado e tirou suas luvas.
— Amigo? Que ironia ouvir isso de você. Você sequer se lembra da forma como nos conhecemos? Como você jogou lixo em mim e nunca se desculpou até precisar da minha ajuda?
Lith não gritou, mas ainda assim as palavras dele acabaram rapidamente com a atitude indignada e moralista do Yurial.
— Desde quando exatamente somos amigos? Você esteve me usando o tempo inteiro e eu devolvi o favor. Caso contrário, fale algo sobre mim que não está relacionado à academia. Quais são os nomes das minhas irmãs? Quais são os meus sonhos para o futuro? Porra, você sequer sabe qual é a minha cor favorita?
Yurial percebeu de repente que apesar de todo o tempo que eles passaram juntos, Lith ainda era um completo estranho para ele.
— Viu? Você não sabe nada sobre mim e eu não sei nada sobre você. Mas não se preocupe, as coisas estão prestes a mudar. Lorde Ernas, por favor, você poderia trazer as garotas pra cá? Acho que algumas coisas precisam ser ditas, mas eu preferiria fazer isso apenas uma vez.
Lith e Yurial ficaram sentados em silêncio, esperando os outros chegarem. Quanto mais Yurial pensava no acesso de raiva que ele tinha acabado de ter, mais aquilo parecia infantil e ridículo.
Lith está certo, nós nunca fomos amigos. Isso era apenas uma presunção que eu fiz por conta própria. Nós compartilhamos dificuldades e trabalhos escolares da academia, mas eu nunca liguei para a vida dele fora da academia. Que belo amigo eu sou.
Quando Friya viu o Lith, a temperatura no quarto abaixou vários graus. Ela não gritou ou atacou ele, em vez disso, ela escolheu se sentar o mais longe possível.
Lith não pegou nem um pouco leve com ela e repetiu o mesmo discurso que ele deu para o Yurial, deixando ela vermelha de raiva no começo e depois pálida ao perceber o quão raso o relacionamento deles era.
Quando o grupo foi reunido, ele finalmente pôde começar.
— Deixem-me apresentar apropriadamente. Olá, eu sou o Lith e sou um assassino. — Com aquelas palavras, o quarto caiu num silêncio constrangedor. — Eu quero contar uma história para vocês. A pesquisa de vocês sobre o meu passado estava errada, eu não matei pela primeira vez quando tinha seis anos, mas sim quando eu tinha apenas quatro.
Lith não podia contar pra eles sobre como ele tinha matado seu pai na Terra, então ele precisou misturar duas verdades para criar uma meia mentira.
— Naquela época, a vida era terrível pra mim. Eu estava sempre com fome, então eu vasculhava a floresta sempre que eu podia sem deixar meus pais saberem e eu caçava usando magia. O que ninguém sabe, nem mesmo minha família, é que eu não estava sozinho.
“Havia um caçador ilegal, um homem violento e detestável que roubava minhas presas sempre que nos encontrávamos e me dava uma surra de cortesia em cada uma das vezes. Eu não podia contar pra ninguém. Eu estava envergonhado demais da minha fraqueza e com medo de que meus pais me trancaram em casa, então inventei desculpas para evitar que eles descobrissem a verdade e poder continuar caçando.
“Eu aguentei aquilo por meses, até que um dia consegui pegar alguns coelhos brancos. Com a carne e a pele deles minha família ficaria bem vestida e alimentada, permitindo que até minha irmã doente conseguisse sair para uma caminhada de vez em quando.
“Mas infelizmente o caçador me encontrou novamente, e roubou minha presa mais uma vez. O que ele não sabia era que nós não estávamos sozinhos. Uma fera mágica também estava me seguindo e quando o caçador se afastou de mim, eu decidi não avisá-lo.”
Os olhos do Lith ficaram marejados ao relembrar seu pai, ao relembrar o quanto ele teve que sofrer antes daquelas escadas escorregadias fazerem o trabalho sujo por ele.
— Enquanto a fera devorava ele, eu não chamei ajuda nem tentei afastá-la. Eu apenas peguei minhas presas de volta e assisti para ter certeza que aquele caçador nunca mais me machucaria novamente.
“Eu posso não ter matado ele diretamente, mas eu o considero minha primeira vítima.”
Ao ver todos os seus amigos fungando o nariz com olhos marejados, Lith balançou a cabeça.
— Não estou tentando diminuir o sofrimento de vocês. Isso não é uma competição de sofrimento para ver quem passou por mais dificuldades. Eu só quero que vocês saibam quem eu sou, quem eu sou de verdade, antes de dar para vocês um conselho não solicitado.
Ele respirou fundo, enquanto olhava diretamente para eles nos olhos.
— Friya, Yurial, vocês também mataram alguém. Talvez porque vocês sentiram pressionados pela academia ou simplesmente porque após matar tantos monstros aquilo pareceu ser a coisa certa a se fazer, não cabe a mim julgar.
“Phloria, Quylla, cedo ou tarde vocês matarão alguém também, seja por autodefesa ou porque será o dever de vocês. Quando esse momento chegar, por favor, lembrem-se das minhas palavras.
“A vida é um experimento cruel em um crisol que nos quebra em pedaços de novo e de novo, nos forçando a pegar os cacos e juntá-los de novo. Às vezes nós saímos disso mais fortes, às vezes mais fracos e na maioria das vezes há tão pouco que podemos fazer a respeito.
“O fracasso não é cair e falhar, é não se levantar. Eu não podia compartilhar meu fardo com ninguém. Como eu poderia falar para o meu irmão, para a minha família, que nossa felicidade tinha sido construída baseada na morte de outro homem?
“Vocês não são como eu. Ao invés de isolarem todos assim como eu fiz, tentem aceitar as mãos que eles estão te oferecendo. Senão, vocês acabarão como eu, e acreditem em mim quando eu digo que isso não é nem um pouco lindo. Está faltando tantos pedaços em mim, estou misturado com tanta merda que eu mal me sinto humano agora.
“Façam o que quiserem com a vida de vocês, mas lembrem-se que hoje eu dei para vocês uma parte de mim e uma escolha. Uma escolha que eu nunca tive.”